estes que o tempo todo passam por nós,
às vezes perceptíveis, outras não.
imagem e síntese do seu próprio desaparecimento.
foto: Libélula fossilizada (Odonata), Museu Nacional (Brasil)
fonte: wikipédia
tempestade em céu azul
por: entomologista do cotidiano | editor: eassis
3.9.18
16.6.17
9.6.17
o
pai tinha verdadeiro fascínio pelas máquinas. por isso, viajar de trem é
para mim uma aventura. restam poucos por aqui. em Santa Tereza, morando
perto da linha férrea, perdia tempo na passarela, aguardando a passagem
dos vagões que levam o minério pra China.
organizando as lembranças, encontrei alguns de seus bilhetes de viagem. o pouco que resta de todos nós e a caligrafia herdada.
passaram-se três anos e é como se nunca tivesse embarcado naquele comboio.
organizando as lembranças, encontrei alguns de seus bilhetes de viagem. o pouco que resta de todos nós e a caligrafia herdada.
passaram-se três anos e é como se nunca tivesse embarcado naquele comboio.
20.3.17
28.12.16
A ficção de abertura do livro Histórias naturais, de Marcílio França Castro,
me fez lembrar mais uma vez a cena em que Jerry Lewis, ator e mímico,
toca uma máquina de escrever imaginária. Cena que Lewis havia realizado
também nos palcos e que depois repetiria para a TV. No livro, o
personagem, que domina a técnica da datilografia, se torna dublê das
mãos de escritores como Kerouac, Hemingway, Cortázar, dentre outros, em produções cinematográficas.
"Foi assim a minha dublagem, a primeira delas, uma datilografia sem rumo nem freio, mas de certo modo gloriosa, posso dizer, até que em algum ponto elevado da minha concentração, depois de horas de estúdio e exausto, uma brisa soprava sei lá de onde, eu me desligava de tudo, como se daquela clivagem pudesse nascer uma forma própria de atuar. Por um instante todos os pensamentos sumiam e minhas mãos simplesmente deslizavam como um cavalo selvagem, naquele estágio do galope em que o corpo chega quase a flutuar e nem sente as patas sobre o chão".
O leitor, convidado para essa aventura, se sentirá dentro de um set de filmagem e se familiarizará com os nomes das máquinas de escrever que possibilitaram obras como “Os Autonautas da Cosmopista”. Livro que serviu a um dos roteiros que as mãos do personagem dublaria: “A estrada e a história corriam sem enredo, em preto e branco, preenchidas apenas pela expectativa de um acontecimento”. Mas é mais do que atmosfera ou máquinas de que se trata.
A leitura me trouxe outra lembrança. Meu pai, que datilografava sem olhar o teclado, tinha o hábito de virar a cabeça, voltando os olhos pra gente, para demonstrar sua habilidade ao conduzir uma Olivetti Linea 98, salvo engano, que até pouco tempo habitava o extinto quartinho de bagunça, como costumávamos chamar, junto a mantimentos e roupas por passar. Gostava de ler, sobretudo romances policiais e contos fantásticos, e se orgulhava de ter conhecido Murilo Rubião, no antigo Banco Hipotecário, onde meu pai trabalhava, nas tardes que o escritor lá ia. Acredito que adoraria o “Roteiro para duas mãos”, de Marcílio França Castro, e leria sem nostalgia. Uma vez que o computador permitiu a ele o mergulho em espaços e tempos distintos, para além da vida protocolar da contabilidade, aprendendo rapidamente como se dava a passagem para o outro lado, com o advento da Internet – atravessar a página branca, como as letras que a perfuravam e ficavam marcadas no rolo, atravessar, como sua imaginação sonhara. A ficção de França Castro faz o mesmo com a gente:
“A paisagem dos campos de algodão, os estilhaços de fontes e tipos datilográficos atravessando a estrada, as pontes, as Rochosas, o deserto, as linhas de tinta correndo como uma locomotiva davam uma sensação de unidade entre os mundos. Às vezes eu tinha uma vontade danada de gritar”.
Como leitora errática e desobediente, levei um tempo para terminar as quarenta e uma páginas dessa ficção, mastigando amendoim japonês, ao passo que revirava os arquivos, à procura do que restou do tac-tac-tac do meu pai.
Era para ser apenas uma nota de agradecimento ao Marcílio, pela prazerosa leitura, e acabou por ser tornar fragmento de uma existência, com esta fotografia.
"Foi assim a minha dublagem, a primeira delas, uma datilografia sem rumo nem freio, mas de certo modo gloriosa, posso dizer, até que em algum ponto elevado da minha concentração, depois de horas de estúdio e exausto, uma brisa soprava sei lá de onde, eu me desligava de tudo, como se daquela clivagem pudesse nascer uma forma própria de atuar. Por um instante todos os pensamentos sumiam e minhas mãos simplesmente deslizavam como um cavalo selvagem, naquele estágio do galope em que o corpo chega quase a flutuar e nem sente as patas sobre o chão".
O leitor, convidado para essa aventura, se sentirá dentro de um set de filmagem e se familiarizará com os nomes das máquinas de escrever que possibilitaram obras como “Os Autonautas da Cosmopista”. Livro que serviu a um dos roteiros que as mãos do personagem dublaria: “A estrada e a história corriam sem enredo, em preto e branco, preenchidas apenas pela expectativa de um acontecimento”. Mas é mais do que atmosfera ou máquinas de que se trata.
A leitura me trouxe outra lembrança. Meu pai, que datilografava sem olhar o teclado, tinha o hábito de virar a cabeça, voltando os olhos pra gente, para demonstrar sua habilidade ao conduzir uma Olivetti Linea 98, salvo engano, que até pouco tempo habitava o extinto quartinho de bagunça, como costumávamos chamar, junto a mantimentos e roupas por passar. Gostava de ler, sobretudo romances policiais e contos fantásticos, e se orgulhava de ter conhecido Murilo Rubião, no antigo Banco Hipotecário, onde meu pai trabalhava, nas tardes que o escritor lá ia. Acredito que adoraria o “Roteiro para duas mãos”, de Marcílio França Castro, e leria sem nostalgia. Uma vez que o computador permitiu a ele o mergulho em espaços e tempos distintos, para além da vida protocolar da contabilidade, aprendendo rapidamente como se dava a passagem para o outro lado, com o advento da Internet – atravessar a página branca, como as letras que a perfuravam e ficavam marcadas no rolo, atravessar, como sua imaginação sonhara. A ficção de França Castro faz o mesmo com a gente:
“A paisagem dos campos de algodão, os estilhaços de fontes e tipos datilográficos atravessando a estrada, as pontes, as Rochosas, o deserto, as linhas de tinta correndo como uma locomotiva davam uma sensação de unidade entre os mundos. Às vezes eu tinha uma vontade danada de gritar”.
Como leitora errática e desobediente, levei um tempo para terminar as quarenta e uma páginas dessa ficção, mastigando amendoim japonês, ao passo que revirava os arquivos, à procura do que restou do tac-tac-tac do meu pai.
Era para ser apenas uma nota de agradecimento ao Marcílio, pela prazerosa leitura, e acabou por ser tornar fragmento de uma existência, com esta fotografia.
25.8.16
Gradiva,
aquela que avança, é nome de uma escultura romana e de uma novela de
Wilhelm Jensen. Sobre o personagem arqueólogo, fisgado pela imagem da
jovem esculpida, Freud escreveu "Delírios e sonhos na Gradiva de
Jensen". Mais tarde, Raymonde Carrasco faria um belíssimo filme
intitulado “Gradiva - Esquisse I”. Pouco tempo depois, em
“Tutuguri-Tarahumaras 79”, Raymonde Carrasco e seu companheiro Régis Hébraud
atualizam mais uma vez essa figura, filmando mulheres e homens que
avançam. O resultado disso são cenas belíssimas dos Tarahumara (“os
dos pés ligeiros”), povo milenar do México conhecido por correr, caminhando por terrenos irregulares, por centenas de quilômetros diários. Mars Gradivus.
Os filmes com os Tarahumara nos chegaram para a mostra Olhar: um ato de resistência, idealizada por Andrea Tonacci, exibidos em 16mm, durante o forumdoc.bh.2015. Desde então, estas imagens permaneceram em mim.
Fotograma 1:
Tutuguri-Tarahumaras 79 (1979), filme de Raymonde Carrasco. Fotografia e montagem: Régis Hébraud
Fotograma 2:
Gradiva - Esquisse I (1978), filme de Raymonde Carrasco. Fotografia de Bruno Nuytten, assistente Dominique Le Rigoleur. Montagem: Anne-France Lebrun.
Imagem 3:
Gradiva, baixo relevo da primeira metade do século II, detalhe.
Os filmes com os Tarahumara nos chegaram para a mostra Olhar: um ato de resistência, idealizada por Andrea Tonacci, exibidos em 16mm, durante o forumdoc.bh.2015. Desde então, estas imagens permaneceram em mim.
Fotograma 1:
Tutuguri-Tarahumaras 79 (1979), filme de Raymonde Carrasco. Fotografia e montagem: Régis Hébraud
Fotograma 2:
Gradiva - Esquisse I (1978), filme de Raymonde Carrasco. Fotografia de Bruno Nuytten, assistente Dominique Le Rigoleur. Montagem: Anne-France Lebrun.
Imagem 3:
Gradiva, baixo relevo da primeira metade do século II, detalhe.
8.1.16
Aos domingos, quando lá íamos ao centro da cidade, meu pai passava pela
banca de revistas de um amigo na Praça Sete, comprava o jornal e
figurinhas para o meu álbum. Seguíamos pela Afonso Pena até a igreja São
José. Durante a homilia, eu sabia que ele pensava em seus mortos e
agradecia por estarmos com saúde. De pé, a cena que me vem à mente é de
um semblante muito sério, o olhar compenetrado para frente. Sentado,
tinha os cotovelos apoiados nos joelhos e o rosto coberto pelas mãos. Já
as minhas mãos, elas estavam suficientemente ocupadas com ilustrações e
sonhos para fazer o sinal da cruz. Hoje, sou eu a pensar em meus mortos e agradecer por estarmos com saúde. Ao reencontrar a igreja restaurada, imagino –
com a expressão herdada
– que meu pai se alegraria de vê-la assim.
sequência: Manoel Neto
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