ao leitor

Tempestade em céu azul foi criado em 2004 por Eduardo Assis Martins que mais tarde se tornaria o editor. Surgiu como uma tentativa de relato do cotidiano sem a pretensão de se enquadrar num gênero literário e acabou por se constituir como um experimento constante de escrita. Tocar a realidade, descrever sentimentos, construir pequenas narrativas e inventar memórias. Fundir texto e imagem. Agraciar. Arquivar. 

O ano de 2007 foi importante para mim e conduziu mudanças necessárias na vida e na escrita. A viagem de pesquisa e filmagem de um filme me levou a Angola e Portugal, além de uma rápida passagem por Paris. Nesse momento começava a esboçar um diário sem data. Descrever os lugares e atribuir a eles uma memória que muitas vezes não estava ali. Atravessada pelas descobertas, mediada pela leitura, completamente tomada pela possibilidade de andar e descobrir um novo rosto, uma nova cultura, um céu ainda não visto, mas imaginado. Escrever na parede branca.   

Posso dizer que as pessoas me importam, antes mesmo da escrita que julgo fundamental para tornar o meu mundo mais possível. As pessoas que me importam estão presentes no gesto de erguer a caneta e fazer correr as palavras, tatear o teclado para que as frases se formem na tela. Na tentativa de registrar minha afeição por elas, distribuo poemas. Os amigos leitores e seus comentários avulsos formam também parte deste corpo de escrita. Por eles tomo o devido cuidado, sem perder a liberdade de tudo dizer. 

Divido aqui uma troca de correspondências do mesmo ano, que possibilitou pensar nas publicações do Tempestade em céu azul não mais como um descarrego, mas como elaboração constante da escrita, conforme já dito.

Glaura 
Belo Horizonte, 02 de junho de 2011


ps. retirei os endereços eletrônicos e mantive apenas as iniciais dos nomes. 


---------- Forwarded message ----------
From: R.
Date: 15/01/2007 23:37
Subject: Re: A
To: "glaura.cardoso"


Oi, Glaura! Tudo bom! Há quanto tempo não nos vemos, não? Cliquei no
link que você nos mandou e visitei seu blog. Gostei bastante dos seus
versos, viu? Pode acreditar na minha sinceridade, porque, se eu não
tivesse gostado, simplesmente não diria nada. A verdade é que eu li
vários poemas: gostei mais de uns; de outros, menos. Mas, de um modo
geral, impressionaram-me positivamente certas qualidades que a sua
poesia tem. Por exemplo: singeleza, simplicidade, limpidez... São
palavras um tanto vagas, mas que traduzem bem a impressão que eu tive.
Vou tentar ser menos subjetivo. Há, nos seus poemas, um senso de
economia verbal muito apurado. Os recursos expressivos de que eles se
valem são muito bem dosados, empregados com muita precisão. Não se
percebem gorduras de nenhuma espécie. Veja-se o poema abaixo, por
exemplo:

Moro numa vila de pescadores. Há dias o céu insiste nublado.
O mar está tranqüilo apesar da correnteza.
As pedras sentem o peso da água.
(se fechar os olhos, lembrará dos parentes mortos)
Não há tristeza nos olhos. Apenas o tempo.

Quando o vir, direi palavras desnecessárias.
Distante de você, escrevo melhor o que não sinto.


O poema tem um nítido componente narrativo. O eu lírico é um
personagem que conta a própria estória. Gosto muito da maneira como
você estabelece uma situação objetiva (e, ao mesmo tempo, uma
atmosfera afetiva) em três versos (e quatro frases) concisos e enxutos
(mas nada secos). De repente, um narrador em terceira pessoa parece
surgir no poema (e faz sentido que ele o faça entre parênteses; só
acho que eles deviam se estender até o fim da estrofe), sublinhando o
caráter de personagem do eu lírico. O efeito disso é interessante. O
poema inteiro é percorrido por um sentimento de falta, de saudade
triste. Mas sem melodrama. Há uma consciência melancólica do tempo, da
perda, da distância. E o interessante é que isso se traduz aqui numa
tristeza sóbria e lúcida, numa desilusão contida, elegantemente
contida. É o uso eficiente da linguagem que provoca esse efeito,
salvando o poema do risco de sentimentalismo em que ele incorre em
função da sua temática. A divisão estrófica também parece muito
funcional. Há um corte bem nítido entre as duas estrofes. É na segunda
que o poema realmente se justifica. Interessante a reflexão que ela
faz (ou melhor, suscita) sobre ausência e presença; "palavras
desnecessárias" e escrever-se o que não se sente. Por um lado, a
presença física do outro faz com que a mediação de códigos e
convenções sociais se interponham entre mim e ele, de alguma forma
"falsificando" a nossa relação, roubando-lhe a imediaticidade e a
espontaneidade. Paradoxalmente, portanto, a presença física do outro
acaba erguendo uma barreira entre mim e ele, a barreira da linguagem
fática e mecânica, das "palavras desnecessárias", que são meros
utensílios retóricos, inerentes à interação social. Por outro lado, a
ausência suprime essa barreira, faz com que a palavra (necessariamente
escrita) seja ponte entre o eu e o outro, e não barreira. O
interessante é que, para que a palavra deixe de falsificar minha
relação com o outro e se converta em portadora da verdade dos meus
sentimentos por ele, é necessário que ela se depure do caráter fático
que ela assume quando nos falamos cara a cara e se elabore
esteticamente, elevando-se ao status de arte, poesia. Mas poesia
também implica fingimento. Por isso é que, para dizer o que realmente
sentimos, é preciso fingir nossos sentimentos. O último verso do seu
poema pode ser lido como uma paráfrase da "Auto-Psicografia". Muito
legal, isso. Um outro poema que me chamou a atenção foi o seguinte:

quando vejo os pinheiros
altos e assustadores,
penso no jovem Winllink.
poeta que, a respeito do amor,
disse ter encontrado
(no extremo norte)
uma flor de vidro.

O que eu disse acima também se aplica aqui. É um poema singelo,
simples, límpido, que encanta justamente por isso. Além do mais, ele é
enigmático. Gosto muito da imagem com que ele se fecha, bela e
misteriosa. Eu suprimiria o ponto final depois de "Winllink". Aliás,
quem é ele, afinal? Glaura, vamos nos encontrar lá para o fim desta
semana? Pensei em chamar também o G. e um outro amigo nosso,
chamado P. É um cara muito simpático e inteligente, também ligado
a cinema. Tenho certeza de que seremos um grupo muito interessante. O
que você me diz?

Abraços! R.


---------- Mensagem encaminhada ----------
De: Glaura Cardoso
Data: 16 de janeiro de 2007 00:40
Assunto: Re: A
Para: R.


Nossa R., estou emocionada com sua análise. Bom ler palavras
generosas de um conhecedor da arte poética. Tenho muito respeito e
admiração por você e pelo G.
Estou sem as lentes, e já é tarde, por isso escrevo breve.
Vou retirar o ponto depois de Winllink.
No caso dos parênteses, ainda estou pensando como seria. Não sei se eu
estragarei a impressão que você teve do texto explicando demais. Há uma "mensagem" fora
do conjunto que se for retirada não danifica a sequência do texto, mas
se as frases seguintes forem encadeadas sem esta informação será outra proposta. Na verdade, é tudo
amarrado e solto ao mesmo tempo. Ou seja, várias frases podem ser
retiradas ou acrescentar outras que não há perda de uma certa idéia
impressa ali. Quando percebi que isso era possível de modo geral, e para não parecer excessivo,
preferi o corte, mas para não cortar demais, eu
coloco o parênteses no texto. O mesmo para:

"pessoas caminham em diagonal.
(depois que todas passarem)
ainda estarei sentada
num bar, num café, num ponto de ônibus."

Óbvio demais, bar, café etc. depois caneta. Mas "depois que todas
passarem" não se refere exatamente a pessoas que caminham em diagonal.
Escrevendo isso percebi que este trecho todo não tem a ver com a
primeira frase nem o final. hummm... acho que aqui o parênteses tem
que mudar de lugar. De todo modo há um "recado" indireto. De um
eu-lírico desaforado talvez. Mas isso fará efeito em uns e outros não
vão perceber nem sentir nada. E se alguém disser que estou falando
disso ou daquilo posso negar até o fim, concordar e mudar de idéia
depois. O fingimento torna as coisas possíveis. Mas sabe, o mais louco
é no link comentário, porque nesse espaço é outra voz que entra e esta
acaba relendo o texto tomando o cuidado para dizer sem explicar. Muito
bacana essas duas possibilidades que só acontecem num espaço como o
blog.
Bom, aceito o convite. Marcado para este fim de semana, pode ser na
sexta? Bom, já ouvi falar de dois P. da Letras. Um eu conheço,
amigo da M. Outro sei de me contarem casos. Chame sim, para uma
rodada de limonada!

Agradeço suas palavras, um beijo,
Glaura.


Glaura Cardoso escreveu:

ei E., veja o primeiro texto crítico vindo de um colega que tive na
letras que estuda poesia. em sala de aula, ele e outro, o G.,
apresentaram reflexões importantes sobre o Herberto Helder e o Lobo,
sobre este eles disseram coisas que tem a ver com o seu comentário
sobre o Lobo ser eunuco, mas a narrativa não.
Divido com vc que é meu amigo, talvez o mais verdadeiro que encontrei
nesta vida e que ajudou a construir a "poeta" que talvez um dia
seja. Alguns chegam e percebem certa qualidade em algo que nasceu para
ser um descarrego sem ser diário.

Tirei o passaporte!

Beijos, Glaura.



---------- Mensagem encaminhada ----------
De: e.
Data: 17 de janeiro de 2007 08:42
Assunto: Re: Fwd: A
Para: Glaura Cardoso

legal, glau.

concordo com ele: "singeleza, simplicidade, limpidez... ", e acrescento frescor, algo pra dizer que é bem direto aquilo que você escreve. direto como poesia pode ser e não como uma lista de supermercado tem que ser, já que tem gente que costuma empilhar frases como numa lista de compras. não é o seu caso. é bem viva.

outra coisa. pra falar a verdade, não gostei do Lobo Antunes. ele é muito, mas muito enfadonho mesmo. não tem nenhuma graça. deprimente. o humor dele é chato e a única coisa que me levou a ler o livro dele foi uma possível novidade formal. bobagem. o joyce faz muito melhor e é chato, mas é muito engraçado (o houaiss é que é chato com a tradução dele). o faulkner é mil vezes melhor que os dois, apesar de ser pesada a novidade formal dele. pensando bem, o herberto helder é um chato também. todos uns malhumorados. chega deles. de mau humor basta o meu. até o Memórias do subsolo do dostoeivski, aquele texto negro e cheio de bilís, tem graça. mas parece que hoje em dia não dá pra rir de porra nenhuma mais. vou demorar a ler Lobo Antunes de novo. talvez as crônicas.

gostei desse "tirei o passaporte" que vc escreveu no fim do email. fiquei pensando "meu deus, o que será que vai acontecer amanhã?", e só pude pensar em coisas boas.

um beijo.
e.