28.12.16



A ficção de abertura do livro Histórias naturais, de Marcílio França Castro, me fez lembrar mais uma vez a cena em que Jerry Lewis, ator e mímico, toca uma máquina de escrever imaginária. Cena que Lewis havia realizado também nos palcos e que depois repetiria para a TV. No livro, o personagem, que domina a técnica da datilografia, se torna dublê das mãos de escritores como Kerouac, Hemingway, Cortázar, dentre outros, em produções cinematográficas.

"Foi assim a minha dublagem, a primeira delas, uma datilografia sem rumo nem freio, mas de certo modo gloriosa, posso dizer, até que em algum ponto elevado da minha concentração, depois de horas de estúdio e exausto, uma brisa soprava sei lá de onde, eu me desligava de tudo, como se daquela clivagem pudesse nascer uma forma própria de atuar. Por um instante todos os pensamentos sumiam e minhas mãos simplesmente deslizavam como um cavalo selvagem, naquele estágio do galope em que o corpo chega quase a flutuar e nem sente as patas sobre o chão".

O leitor, convidado para essa aventura, se sentirá dentro de um set de filmagem e se familiarizará com os nomes das máquinas de escrever que possibilitaram obras como “Os Autonautas da Cosmopista”. Livro que serviu a um dos roteiros que as mãos do personagem dublaria: “A estrada e a história corriam sem enredo, em preto e branco, preenchidas apenas pela expectativa de um acontecimento”. Mas é mais do que atmosfera ou máquinas de que se trata.

A leitura me trouxe outra lembrança. Meu pai, que datilografava sem olhar o teclado, tinha o hábito de virar a cabeça, voltando os olhos pra gente, para demonstrar sua habilidade ao conduzir uma Olivetti Linea 98, salvo engano, que até pouco tempo habitava o extinto quartinho de bagunça, como costumávamos chamar, junto a mantimentos e roupas por passar. Gostava de ler, sobretudo romances policiais e contos fantásticos, e se orgulhava de ter conhecido Murilo Rubião, no antigo Banco Hipotecário, onde meu pai trabalhava, nas tardes que o escritor lá ia. Acredito que adoraria o “Roteiro para duas mãos”, de Marcílio França Castro, e leria sem nostalgia. Uma vez que o computador permitiu a ele o mergulho em espaços e tempos distintos, para além da vida protocolar da contabilidade, aprendendo rapidamente como se dava a passagem para o outro lado, com o advento da Internet – atravessar a página branca, como as letras que a perfuravam e ficavam marcadas no rolo, atravessar, como sua imaginação sonhara. A ficção de França Castro faz o mesmo com a gente:

“A paisagem dos campos de algodão, os estilhaços de fontes e tipos datilográficos atravessando a estrada, as pontes, as Rochosas, o deserto, as linhas de tinta correndo como uma locomotiva davam uma sensação de unidade entre os mundos. Às vezes eu tinha uma vontade danada de gritar”.

Como leitora errática e desobediente, levei um tempo para terminar as quarenta e uma páginas dessa ficção, mastigando amendoim japonês, ao passo que revirava os arquivos, à procura do que restou do tac-tac-tac do meu pai.

Era para ser apenas uma nota de agradecimento ao Marcílio, pela prazerosa leitura, e acabou por ser tornar fragmento de uma existência, com esta fotografia.