19.9.09

Sobre a impostura

Li Decamerão aos treze anos de idade, longe do olhar corretivo dos pais. Aos domingos ia à igreja cumprir com os postulados de uma educação católica. Meu pai, um louco indomável, minha mãe, uma mulher sóbria. Embora a vida precária, nunca nos faltou livros na estante. O rearranjo não seguia um rigor bibliográfico, visto que nunca pertencemos à aristocracia. Boccaccio ficava ao lado de Goeth, Flaubert, Baudelaire, Hesse, Miller, Melville, Eça. Já os clássicos da literatura brasileira ficavam numa prateleira acima: Assis, Ramos, Rosa, Nava, dentre outros tantos cuja lista soaria pedante. Não me recordo de haver escritoras, que só me chegariam mais tarde: Hilst, Telles, Lispector , Duras, Wolf. Talvez por isso tenha desenvolvido um humor ácido. Depois descobri por conta própria uma série de outros autores e autoras que atravessariam o meu corpo e a minha alma a tal ponto que, se não menciono, é para não revelar gratuitamente referências tão caras.

Durante as homilias pensava em Decamerão e me perguntava se as coisas de Deus poderiam ser assim tão chatas. Depois verificaria que se tratava de um problema de tradução e que Deus resguardava sua glória também na impostura. Talvez tocasse mesmo bateria num grupo de jazz, como alegou o Lobo.

Para uma filha de Deus que conviveu com bêbados e loucos somente a impostura recuperaria a redenção diante de um mundo tão avarento.

Já não me recordo da estrutura decamerônica. À capa do livro falta um pedaço. Penso se posso descrever com precisão ou se apenas invento repetidas vezes, na parede branca, a famosa passagem em que os jovens se sentam para contar e escutar histórias. A pintura me pareceu mais objetiva. Também me recordo vagamente das homilias. Estas me retornam em sonho. Como a passagem de Maria Madalena que nunca me saiu da cabeça.

O que avassala é a culpa que a fé cristã nos faz carregar. Mais avassalador ainda quando lidamos com pessoas desprovidas de fé. Não que devamos ter fé em algo divino, muito menos no homem, este ser tão tortuoso. Porém se torna fácil, não tendo fé, impingir regras, imprimir dogmas particulares e uma culpa semelhante à imagem do filho de Deus na cruz. Fácil distorcer um apelo. Ou detratar como loucura. É preciso ler as palavras que nos chegam sinceras.

Temendo pela reputação, alguns mantêm a vida como uma grande plantação de tomates. Aquilo que não serve, deitam fora.

Chegarão a artistas?

Já os escritores, sendo mentirosos, são mesmo uns loucos, uns malditos, proferindo aquilo que os atormenta.

Mais vale um sorriso. Nada em troca.

Acúmulo demasiado de energia e verdades

quando muito

deveríamos estar vendo as estrelas deitados no quintal.

8.9.09

tarde com o vento

pensar, pensar, pensar...
fazer, fazer, fazer...


palavras ditas a ela
ela seguindo seu destino
que bom nos encontrarmos novamente
numa noite de domingo

adoro ler-te

o tempo se aproximando dela
queria ter estado com você mais uma vez
acarinhando a face
as folhas caíam das árvores com o vento

há muito não lhe dedico um poema,
mas o farei em tempo
se aqui já não é,
será com o quebrar das linhas


para carolina junqueira

7.9.09

sob a imensidão da noite*

Encanta-me caminhar pelas ruas do bairro
Ver os adornos desencontrados das casas
Os portões perdendo a tinta
Sentir a luz do poente
Tingindo de vermelho o topo da montanha

Certos de que estamos envelhecendo
Mergulhados na imensidão da noite
Deitamos café na xícara
Observando as primeiras constelações

Descobrir-se na noite
Na insônia pessoana
Nos versos que agora devoramos
Por onde andou que não me viu em sonho?

Seu olhar, seu silêncio
Imagens que correspondem a este cotidiano
Enquanto a janela recebe a primeira luz da manhã
O corpo ainda insone
Vasculha o que restou

Na mesa onde tomou nota
Repousa uma flor

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*para o encantador (E.E.)