31.12.10

quando ele a vir novamente
somente o tempo poderá dizer
se o amor se espalhou pelo mundo
e encontrou o seu destino

da parte dela
uma flor colhida na madrugada
nada mais importante
do que a doce despedida

foi assim que Florbela encerrou seu diário
esquecendo-se do mundo que havia nela
não mais cabendo a dor
assim como num sonho eterno 

30.12.10

Mussulo

De uma ponta a outra da ilha
Casas de folhas de palmeira
O mar imenso
A mugir como um touro

Do outro lado
O amor
Sonha beijar com os pés na água
Sob a influência do azul
A ofuscar-lhe a vista

Correr os dedos na areia
Os pulsos frouxos girando na superfície informe
A escassez dos versos a se perderem na ausência de rima

O sol de África é uma bola de fogo

(anotações de viagem. diário sem data)

28.12.10


Tudo atravessa o meu corpo
como um mergulho de serpente na água
Do cedro observo o vale
a se perder de vista

Tombando sobre um jardim
não vejo mais as cores
Apenas a noite se dissolvendo
no céu da sua boca

Não escrevo para mandar recado
mas se um dia nos encontrarmos...
Que possamos construir outro presente
rumo ao infinito que é nosso



27.12.10

pode ser que ao acordar
eu me sinta serena
para seguir o mistério que há nas letras

talvez tome para mim o que há em você
de incertezas

a dúvida alimenta a alma
e o corpo reage na cama
pode ser que amanhã o espírito anoiteça

26.12.10

A tristeza é inerente ao meu corpo
Não acredito que possa ser feliz
Das vezes que fui
Refutei

O poeta se sente condenado
Pelo destino que traçou para si e para os outros
Seus personagens

25.12.10

Caros leitores,

Resolvi atualizar o blog e perdi a ferramenta antiga Echo e todos os comentários desde 2004. 
A Echo não quer permitir mais a minha moderação a não ser que eu pague $10 por mês. Triste fim de mensagens que eu tanto adorava rever e, o pior, os poemas que delas surgiam. 
Desafio: Nica, Edu, Ricardo e João, vamos reinventar tudo? Calosa Frida que chora por não ter sido prudente em copiar tudo antes. Não consigo recuperar a versão rosa e tudo que lá continha de marginal. 
Mas uma liberdade imensa esta, de começar do zero. Poderia até apagar algumas postagens mas não seria justo com o leitor que me sabe inocente, ganhando o sabor da carne nos dentes mais tarde. 

É isso aí. Onde encontro um tom branco?! Escrevo sobre o branco, não mais sobre o rosa! Da cor da neve por onde caminha o editor.

Beijo, 
Glaura. 
assim a imagem de um coração
como nesta fotografia
tardes que passei com ela
diz o poeta parado na esquina



20.12.10

Escuta

Quantos poemas para confessar?
Nesta terça-feira de carnaval
vejo a festa acontecer
por entre os vidros do bar
Mais uma vez seu rosto recortando a parede branca
Não posso conter este impulso
Querer escrever sem declarar
Não posso tocar seu rosto
E lhe beijar agora

Como confessar nesta terça-feira de carnaval?
Os poemas se arrebentam em folhos
Em cada dobra
Uma nova imagem se dissolve no céu da boca
A voz se contém
como uma colher tocando a língua

Declarar por poemas
que não se fazem entender
A metáfora é sempre artificiosa
Mas quando o sol nascer
A maquiagem derretendo a face
como chuva que lava o asfalto
Talvez não me arrependa
de nada dizer
                                                        Amor,

Ao menos  me tirar para dançar, você poderia
Quem sabe já o tenha feito em sonho?
Quem sabe?

(diário sem data)

10.12.10

Pablo Neruda


o vento desta noite gira no céu e canta
como quem pede licença
para invadir a madrugada
adentrando os segredos mais profundos
que a alma resguarda

8.12.10

sobre a finitude

foi meu pai quem me ensinou as letras
a ele devo a estante com os clássicos da literatura
e, ainda que precariamente, também sobre a história da arte
os livros serviram como guia em dias sombrios
o medo da morte

a ele, gaivota, tudo que eu puder lhe dar de amor em vida

6.12.10

o tempo do poema
muitas horas em frente ao computador
e nada
nem um poeminha que seja!
ô vidinha esta do consumo

2.12.10

Fico pensando se as coisas devem ser tão definitivas assim
O quão definitivo já é o futuro que nos aguarda
Se uma flor cresce no jardim,
É sentimento fecundo
Se a deixamos morrer,
Foi por esquecimento

26.11.10

pode o poema custar a vida do poeta?
cortei a pele com a faca
para que a dor da alma se instalasse no corpo
tudo que posso lhe dar
é uma cicatriz

23.11.10

Kawase*
 
Encontrar o mundo e sua superfície
Tocar a superfície 
As imagens tocam a morte

Sua maior certeza
Estar ainda vivo 

Incerto somente
O outro mundo que o aguarda

Ela filma para viver, para se sentir viva,
Para se relacionar com o mundo,
Talvez para se encontrar consigo mesma no mundo
Interroga a si e os outros
Deixa aparente suas dúvidas, angústias, ressentimentos e dissabores
Também a ternura  
Nas palavras sinceras que resistem

Adormece o crítico, com o pôr-do-sol
Cujo ciclo independe de nós
Cerejeiras amarelas em flor

A você
Uma carta para não fazer morrer este sentimento

---
*ao querido amigo Fred que está sozinho na Suíça e que não pode desfrutar das tardes chuvosas de domingo

13.11.10


que dia o amor vem o mar encontrar?

perco noites de sono
horas buscando versos
palavras que descrevam este sentimento

tudo no mundo num único poema?

tudo é a vida!
seus olhos sutilmente desencontrados
enxergam para além das incertezas
e pousam sobre mim
pedindo mais um dia que seja

mas o mar é temeroso

náufragos que somos
e vamos tentando suspeitar
da manhã que chega

o homem que eu amo

tem olhos de floresta
a floresta é tudo aquilo que eu vejo

10.11.10

Às vezes a palavra corta como uma lâmina afiada
E fere quem a gente quer esteja bem
A palavra não revela o apelo deste corpo
E fere a minha alma
Que adormece sem que se perceba
Embalada pelo som de um trem 



--------------
para o poeta que dorme em meus braços

7.11.10

Quando não se espera nada,
De repente somos tomados pelo sentimento
Como saber se é chegada a hora?
Como saber se é você
e não outro
A despertar o amor em mim adormecido?
Que o vento sussurre em meus ouvidos
E diga mais uma vez
Vá!
Ou não
Fique!

2.11.10

O barco

Ela sentada à mesa
Ele pensando na vida
Trocam duas, três palavras
Louvre, Orsay, Montparnasse
Traçam destinos no mapa
Saint-François-Xavier/ Invalides
Ou se preferir
Uma caminhada pela Avenue du Maréchal Gallieni

A casa é como um barco  
Se tornando memória
Da janela da pequena sala,
Ainda se pode ver as ondas baterem na proa,
também o cair da tarde sobre uma falésia 

 
Paris, 2007
para Gustavo Schettino
que me recebeu como uma amiga

31.10.10

Notre Dame

Para você, meu amor,
que anda longe
deixei estes versos
para quando nos encontrarmos
Sabendo que as ruas por onde caminho
foram também suas
As mesmas janelas fotografo
e a luz que incide sobre os telhados
(neste cair da tarde)

Do alto da escadaria
avistamos Notre Dame
A saudade que em mim habita
tomo nota

(anotações de viagem, diário sem data)

30.10.10

É preciso ter o espírito livre
Para que o corpo encontre a metade que lhe cabe
Vaguemos pelo mundo
E busquemos cada vez mais as pessoas do mundo

Perdidos na imensidão da noite
Como poetas vorazes  
Certos de que ninguém nos compreende
Seria preciso mais mil anos?

As paixões cegas são as que menos interessam
Livres de toda posse e de toda arrogância
Podemos ver o mar
Sem pensar no que oprime o presente

27.10.10

Quando vem a chuva
O vento passa a rir
E ri áspero levantando o vestido

Nesta noite chuvosa e de ventania
Se nos encontrássemos por acaso
Poderíamos tomar algo quente
Vendo a chuva e vento terminarem seu rito de passagem

26.10.10

A queda de Ícaro
 
                                para tio Marco

O dia após o outro dia
Ícaro escolhe a quem tocar com os dedos rosa

Sua queda provém do desejo de ir mais alto
do que os ares pudessem lhe fazer voar

Ícaro tem os pulsos firmes

mas o coração frágil
Em busca da liberdade
pediu rasgando os céus
que seu corpo pendesse no mar 


22.10.10


e se um dia a chuva...

Florbela,

é tão triste morrer na sua idade?
vejo seus olhos, penitentes

 
Florbela:

Ser-se novo é ter-se o Paraíso,
É ter-se a estrada larga, ao sol, florida,
Aonde tudo é luz e graça e riso!


Florbela,

e se um dia a chuva
pudesse ter lavado seu espírito
teria dormido como um anjo
e não morreria em sua dor
despedida


Florbela:


A minha Dor é um convento ideal
Cheio de claustros, sombras, arcarias,
Aonde a pedra em convulsões sombrias
Tem linhas dum requinte escultural.


Florbela

de roxo, violeta e lilás
seu vestido no dia em que se tornou imagem
em mim, seus sonetos são agora
noites e manhãs


Florbela: 

O sol morreu ... e veste luto o mar ...
E eu vejo a urna de oiro, a balouçar,
À flor das ondas, num lençol de espuma. 

Florbela,

e se um dia...
tenho medo de mim
quando anoitece o quarto
mas logo uma pequena fonte de luz
vinda de uma fresta
invade meu corpo e minha alma

há esperanças neste mundo?
o sono não vem
e com ele a espera dos dias felizes

20.10.10

                                          para eduardo assis
                                                     (dos comentários ali embaixo)


como a vida às vezes me parece tão estranha...

é adormecer para encontrar nos sonhos a verdade?

acordo triste e febril

hei-de ver os cisnes um dia

de o encontrar nesta terra cinzenta em frente ao relógio?

eis que me pego sorrindo

de imaginar o meu mundo ainda se construindo

não temo mais a morte

e com isso celebro a vida

o que seria de mim

poeta e mística

não fosse você

meu caro amigo?

vá ver o lago

tão logo chego e não será um engano

18.10.10

Rilkiana
  
para você, meu segredo,
que habita meu corpo inteiro
uma flor para acariciar seu rosto
nesta noite escura

em meus braços,
como um anjo recém-caído,
adormeceu de repente
e dormimos os dois
com o canto dos pássaros

despertei com o sussurrar do vento
e vigiei seu sono
vi a primeira luz da manhã iluminar sua face
com a ponta dos dedos,
contornei seus olhos e sua boca 
declarando amor verdadeiro

12.10.10

Mesmo que me peça,
Não saberei explicar por onde passam todos estes sentimentos que atravessam os dias
Provavelmente inventarei uma dor que não existe
Um amor ausente,
Um beijo de despedida

Outro dia senti o perfume da noite
Pensei em você
Nos seus versos misturados aos meus
No quão impreciso é o futuro que nos aguarda

Colhi o cheiro da noite

Da pedra brota uma flor
Que irá enfeitar a nossa mesa
Adentrando os desejos mais profundos
Sinto-me cada vez mais forte perante a mesquinhez do mundo

10.10.10

A passageira
                                                      Para Raquel Junqueira

A sombra das árvores a incidir na casa
O corredor guarda o corpo
Embocadura
O corpo gemendo
Lentidão dos gestos

Andar por entre as árvores
Lábios afastados
Beleza indecisa
A boca mordendo o vestido
Sombra sobre a forma

O homem caminha em direção a ela
Presa à sombra
Não tem como escapar ao apelo do corpo
Rola pelas escadas
Tem as mãos vazias
Os olhos febris
Um peso nos ombros
Ferida que não estanca

Desfalecida, deixa pender a mão
Adentra na noite
As pedras recebem a água da manhã
Ensopada, vê os ânimos se renovarem
Despe-se agora

Abandona o corpo
Olha o rio como da primeira vez
A floresta que o rio reflete

A nudez da planície
A chuva se dirigindo ao mar
O mar é o que não vejo

(anotações de viagem, diário sem data)

6.10.10

dois corpos se encontram na noite infinita
e se separam na manhã seguinte
é sempre um despedir
não adianta forçar o destino

 

os caminhos são múltiplos
os corpos que se encontram na noite infinita
e se separam na manhã seguinte
não são garantia de felicidade
 

algo está para acontecer
temos o mundo e a escrita
a escrita é o amor, o ódio, a alegria
ao mesmo tempo outra coisa
superior a qualquer sentimento comum aos homens

28.9.10

sonho com um mundo sem excessos
e nele apenas a página branca
e um único poema

23.9.10

Entre continentes
(o meio é o mar)

                       para Nica e Ribão 
                       por uma proposta cinematográfica

aquilo que nos afeta
neste cotidiano
faz valer estes versos
que ora trago em imagens

caminha sempre pensando
as ruas, o rio, o canto e o amor
uma flor nascendo
em cada uma das fendas
destas paredes brancas

sinto saudades de todos
ao navegar nesta luz
refletida no Tejo

um barco passeia pelo plano
atravessando o quadro

(anotações de viagem, diário sem data)
Sintra
                                                                                 

O rio que corre entre as macieiras
Deságua no mar e não em outro rio
O que mais me impressiona
É o mar
A devorar as rochas 


(anotações de viagem, diário sem data)

21.9.10

Amor

Desperdiçaram esta palavra
                                  Amor
Em muitos livros e filmes
que  não valem a pena

Usaram, por outro lado,
o amor (ou a ausência dele)
para fazer poemas nos intervalos do dia

Do amor
(o sentimento)
Quem o tem sabe

O poeta está sentado sozinho
Numa mesa de bar
A espera do amor entrar
Como uma lufada ele o vê
O amor, porém, passou longe
Como um golpe
E o poeta escreve a dor de não poder amar ninguém 

(anotações de viagem, diário sem data)

19.9.10

é estranho olhar para os objetos e não perceber nada neles
é estranho quando o cotidiano não lhe traz sentimento algum
onde você está?
sinto-me seca, vazia
o camponês partido em três
todos os poemas espalhados na cama
poemas que um dia
hão de narrar a vida...

17.9.10

De Angola trago um vestido, uma rosa, uma pequena escultura

Na esperança de ver novamente seu horizonte

Ouvir seu canto

Tatear o seu ar

Relatar seu pranto



Das viagens que ainda não fiz

Circuladas no mapa

Já se tornaram saudade

De tempos ainda não vividos

De livros ainda não lidos

Poemas ainda não escritos



A árvore centenária guarda seu nome

Guarda você

E estes versos 

(anotações de viagem, diário sem data)

14.9.10

Sinto nostalgia do tempo em que escrevia no sobrado da Serra
A atmosfera do escritório, os livros na estante
Os galhos das árvores na janela imprimiam um ritmo incomum
O vento fazendo curva na Oriente
Os gatos da vizinha empoleirados


Era feliz o tempo em que os amigos lá iam
E fazíamos festa
Tudo passou pela sala escura

O tempo hoje é um florescer contínuo
Não cabendo mais a melancolia
Tateando as letras
Procuro uma imagem escondida
O sorriso de agora que não posso revelar 


para Nica, Edu e Garro

13.9.10

Memórias I


Ela fez as malas. Buscou colocar na bolsa alguns pequenos objetos da casa que tinha mais afeição. São apenas objetos de porcelana e metal. Lembranças de viagens escassas. Olhou para dentro de si e viu um mundo precário.  Um passado estilhaçado. O pai, um louco adorável, nunca soube que ela chorava escondida atrás da porta do quarto. Desde então, quando o quarto não conseguia abrigar sua alma, procurou descobrir esconderijos pela casa. Passava horas no escuro contando até mil. Adormecia. Inventou uma realidade paralela. Jogos de enganar a solidão, de enganar a morte. Sempre temeu a morte. O pai repetia insistentemente que o mundo não valia a pena. Ela tinha apenas seis anos quando perdera a ilusão, se dando conta das paixões febris que tornavam este mundo doente. Procurou se encontrar na noite sem fim. Abandonou os esconderijos e mirou o céu.  As estrelas pareciam lhe sorrir. Primeiro achou, pelas histórias que a mãe contava, que eram as pessoas que morriam e que lá estavam felizes. As três Marias haveriam de andar sempre juntas.  A maior, Estrela Dalva - cujo brilho ofuscava os olhos. Depois descobriu que eram corpos celestes, que poderia passar por dentro delas, que Dalva não era estrela, que se chamava Vênus, e que a vida era finita. Não se reconheceu no universo, imaginou a própria morte, viu seu corpo tornar poeira fina, dessas que o vento carrega. Tocou na terra e viu que de lá surgiam pequenos insetos, todos eles trabalhando independentemente dela, de seus medos. Mirou as árvores, os pássaros, as vespas. Sorriu com o dia. Esperou a chuva e se viu novamente sozinha. Na estante de livros se deparou com os clássicos, também com as imagens que narram a história da arte. Reconheceu-se fascinada pelas figuras antes das letras. Aprendeu a decompor as cenas. Com o olhar aguçado, tomando para si as particularidades da vida, começou a desvendar os horrores e maravilhas da realidade que se faz nos livros. Voltou a se esconder na solidão do quarto depois de descoberto que podia escrever, escrever, escrever.  O relógio marcou a hora de ir. Não olhou o entorno. Esqueceu o caderno, esqueceu do último poema. Fechou o passado em ata.

2.9.10

Ruy Duarte de Carvalho

                                     
Marquei no mapa um lugar
onde o tempo demore a passar:
Namíbia.
Suportarei o deserto?

Amor ao vento

que balança o véu
que cobre o seu rosto

As cartas são afagos

Seu canto
para ser lembrado



para o Zetho 
que muito sabe desta vida 
pela carta enviada ao amigo 
por compartilhar sua Angola comigo
 

1.9.10

das imagens que ora carrego
o corpo de uma jovem
derretendo no chão de agosto

a ideia primeira
a mão pendida 
o sopro do vento

ela tem os cabelos claros
um sorriso amável
uns olhos desconfiados

a culpa que carrego comigo
não saber distinguir
rumor de grito

a carta*

por que eu haveria de apagá-la?
por que preciso apagá-la?
tão lindas palavras me chegam
com o vento nesta tarde de calor
como é lindo poder ler você

que amor é este entre os homens?
que amor é este que se encontra
entre as flores que caem das árvores
e o rio cuja margem não se alcança
só sei fazer poemas, minha amiga
e hoje quase desisti

eu me sinto enfraquecida
triste e risonha

*para Nica
toda palavra é crueldade
a palavra fere

(censura e dor)

no amor
não há miséria

no silêncio se faz
um filho

29.8.10

foi em agosto

é estranho voltar ao bairro da infância
tudo parece familiar
ao mesmo tempo distante
 

os doidos do bairro
são os mesmos doidos
cada vez mais doidos
 

minha mãe a lhes dar comida
eles a agradecerem a Deus
ao Sr. Nosso Jesus Cristo

estamos a envelhecer

como antes o velho padeiro e português
ou o espanhol da casa verde

estamos a envelhecer, amiga

já se passaram anos...
ainda não nasceram os filhos

tudo igual no bairro da infância

e você como uma estrela
que do céu ri da nossa sorte

23.8.10

Eassis

na caixa de correios
um cartão
o cartão de um amigo
triste a distância
este estar sozinho?

dos afetos

que vêm e vão
vez em quando, a alegria

doces tardes de agosto

cuja luz (que luz!) não tem igual
e o frio que timidamente vai nos deixando
não tarda esquecido

o tempo está seco

mas o amor floresce
como as flores vespertinas

meu amigo,

você é um querido.
Van Gogh repousa
entre as estampas e memórias 
daqui a pouco
nos encontramos para uma cerveja
quiçá um jogo de cartas?



19.8.10

a vespa e a orquídea

5#10

entre seus olhos
o meio
nosso amor é rizomático
não tem início nem fim
sempre em vias de se fazer
no infinito

você atravessa em mim
desejos segredados
eu em você sou vespa e orquídea

no rio
roendo as margens
adquirimos velocidade no meio

o filósofo diz:
faça a linha e nunca o ponto

o poeta diz:
o mundo do rio não é o mundo da ponte


o que é o amor?
justo onde ele se esconde

16.8.10

A noite infinita

4#10


Meus olhos procuram os seus na noite incerta.
Ao encontrá-los buscam,
escondido atrás da árvore dos enamorados,
o abrigo dos dias felizes. 

É tão puro e simples aqui dentro de mim.
Como mergulhar os pés em água morna e sal
para lavar o corte.
Ou cobrir o rosto com as mãos
e reaparecer logo em seguida. 

Negra noite sem fim. 

Meus olhos que procuram os seus
são olhos de avenca.
Encontrando seu sorriso em cada uma das nossas manhãs.
Pudesse não permitiria que existisse a dor
ou que nenhum mal alguém lhe fizesse.  

Meu bem, durma um sono tranquilo.
A chuva renovará o ar
e a esperança de uma vida mais sincera.
A você uma flor e os meus encantos. 

Um bom dia vem quando menos se espera.

9.8.10

Sentados na Irlanda

                                                      Para o Eduardo Assis     

Nem sempre o que eu escrevo
é o que eu escrevo
Às vezes é exatamente o sentimento atravessando a alma
Como uma lâmina afiada
Por vezes, a evidência de uma voz alheia
Um grito
Quase sempre blefo
Como num jogo de cartas

Aprendi a ganhar muitos feijões no pôquer

Fingindo não saber jogar
A tabela de combinações ao lado
Não é que as cartas me saíam por entre os dedos?
Pousá-las uma a uma
Requinte de sarcasmo
Ai como é gostoso o gosto de cerveja...

Alguém está na Irlanda

Vagando pelas ruas
Se perdendo nas livrarias e cafés
Procurando uma mesa, alguns feijões
Cortando o baralho em três
Quem me ensinou a blefar


6.8.10

Maria Madalena

Sentirá a pedra rasgar a carne
Sem a intervenção de Deus
Sob tortura,
Não há quem resista em silêncio
Prevalecerá a versão do algoz
 
Engana-se quem acredita aqui ser diferente 
Com a faca o carrasco corta a carne,
Divide as partes e as redistribui
Da ferida escorre um líquido quente 
A liberdade um ato de lograr?

5.8.10

A loja de quinquilharias

A porta do vizinho sempre estava aberta
Nunca precisou tocar campainha
Ou gritar no portão
Quando dele necessitava algum aviamento
Era só entrar, escolher, depositar as moedas na registradora
Um dia, havia apenas um corpo no chão
Fora a imagem mais forte de então

Recuperei esta imagem
Ao ouvir o trem nesta manhã de sol
Estendendo as roupas no varal

Pensei na sorte
Olhei para o céu
A luz acariciando a face

3.8.10

Da infância*


Olhar para o passado
Remexer em imagens que julgava extintas
O porão da casa guardava mistérios
Já não sei se tudo ali foi real
Ou se invento na parede branca

Era bom o tempo da infância
Da alegria de viver no quintal,
Caçando minhoca e tatu-bolinha,
Guardo a imagem de uma tarde ensolarada
Duas crianças felizes
Colocando fogo nas bananeiras
Três jovens aflitos
A apagar com baldes e mangueira


Seria bom se tudo de ruim fosse apagado
A escrita ganharia mais leveza
Missão do poeta
Não poupar quem quer que seja

*para meus quatro irmãos