30.12.08

Canção de ninar*

Entre o sono e o estar acordado
Penso frases que me são caras
Jamais irei reproduzi-las tal qual se processam em mim
Porém, se as ouço apenas e não escrevo
Uma insônia absurda toma a mim o sonho desejado
Da cama à caderneta, o que se perdeu?
O pensamento mais ágil do que os dedos
Uma laranja para a digestão
Amor embalado por uma canção de jazz
O menino dorme

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* para Matias Monteiro, às 5h da matina

27.12.08

De cartas e canções

Poderia endereçar a você todos os poemas
Mas o que nos separa
A idade, a monogamia?

Atingir com palavras
Este sentimento comum que atrai os homens
(Amor)
Ouço sua voz, um violão
Ouço amargar uma espécie de solidão

A noite garoando inteira
Vento úmido cortando a espinha
Pés descalços no assoalho frio

Aqui, pairam versos seus
Os meus
Na gaveta, apenas rascunhos
de um romance sem graça

Não posso lhe desejar agora
(Minto)
Desejar eu posso

Aporia

Se desvio o olhar é por insegurança
Mas vejo seu rosto recortado na parede branca
Na noite tudo padece

Seus olhos floresta
Sonhei você
Hesitei

Adentrar na floresta
Ajustar o foco
Desfocar o fundo

Amar você?
O toque pareceu impossível

Desenhos

Talvez quisesse uma terra boa
Neste descampado onde vi pinturas rupestres
Crença na origem
Talvez duvidasse da existência dos homens antes dos homens
Se a matriz do desavisado é o plágio
A minha é o fingimento

18.12.08

Palu

A aldeia fica afastada do grande centro
O sol impera ao meio-dia
queima florestas

Se fosse esperar pelo tempo
não traçaria dois círculos e uma reta

– A estrada precisa atravessar sítios

Os olhos ardendo em febre
Ignorou o gesto do velho Soba

– Talvez não vingue por aqui

16.12.08

Se o sono dos justos vem com o cair da noite
O meu
Carregado de pesadelos
A casa, goteira e mofo
O andar de cima guarda algum mistério
Na caixa escura, a imagem da Senhora Aparecida
(o vestido faltando um pedaço)

– Quando as coisas irão melhorar?
Dizia o pai:
– Breve...

12.12.08

Sem teoria

Na sala de estar: uma cadeira, alguns livros, objetos de porcelana
A TV exibe imagens desgastadas
Não sei se padeço de algum mal
Porção de tempo

20.11.08

As horas que separam a noite da entrevista
O lugar mais confortável
A escrita?

14.11.08

[Ritornelo]

Começar com gestos repetitivos

Abrir mais de uma vez a porta antes de sair de casa

[ver se a chave do gás está virada,
se o ferro está desligado]

Abrir mais uma vez a casa

12.11.08

Pergunta não feita a Carlos Alberto Prates Correia

Em Cabaré Mineiro, após a canção enlevada pelo personagem anônimo de Nelson Dantas e a bela jovem, cena que nos encanta pela delicadeza do gesto amoroso, a onça-mulher é morta pelo personagem em seguida.
Medo ou amor de morte?

18.10.08

dos encontros não programados*

Morrer em Dionísio
Renascer em Pessoa
É de Bethânia o canto atravessado no amor

você está na noite
jamais pegará o telefone
e ligará para ela

mas não deixará de ler jornais

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*para kk, joão e rafa

17.10.08

dos desejos dos poetas

O poema, também uma espécie de traição?
Quantos escritos não postados
Em umas poucas palavras poderia lhe revelar o mundo
(amor)

sentimentos não se escondem numa gaveta
(falsa impressão)

Do portão ao quarto,
sete, oito lances de escada
Menino dos olhos
(floresta)

incapacidade do corpo:
magoar quem não mereça

5.10.08

Notas para uma biografia s/d

Jogaram suas valises no trem
Partiram pouco antes do galo cantar
Para o Rio de Janeiro
Nicolau e seu pai almoçam no vagão restaurante ao meio-dia em ponto
A passagem pela capital mineira será lembrada em encontros banais
Lufada nas pestanas
A comida sacolejando no estômago

4.10.08

Notas de Nicolau Paropas

seja paciente com os vaidosos
deixe que inflem o ego
permita-lhes dizer mais do que deveriam
que haja surdina!
conquistarás o mundo

28.9.08

O dia depois do dia

Amor mal curado se resolve na ressaca
No diálogo com o vaso sanitário,
percebe-se a potência do corpo
A tentativa desesperadora de retificar a merda de uma embriaguez

24.9.08

À maneira de Nicolau Paropas

Os poemas falam a dor, a desonra, a desforra
Também as cabrochas, o desespero, o amor
Um jovem, um tiro, três décadas atrás
No guión, propostas indecorosas
Durante semanas, o peso do tempo
Sorriso a derreter os dentes
Morte, engano

Sentados à mesa
– Prato de sopa, água, pão, azeite para regar

23.9.08

Tempo das chuvas

Recebeu a notícia deixando cair a caixa de miudezas
Decerto não entendia a língua
Apenas viu o sorriso indeciso nos lábios de Nicolau
e uma pequena mala no alpendre da casa
Nesse ano, os ipês tardaram a florescer
Sons a povoar os dias

13.9.08

παλίμψηστος

A escrita de Nicolau se mantém à maneira dos palimpsestos
Um vestígio foi encontrado à Rua dos Guajajaras
Na parede do edifício, palavras sobrepostas
Dentre elas riscar
(duas, três vezes ao dia)
O tempo se encarregou de lavar a segunda Isidora

5.9.08

Do jogo

O apego do artista com a obra é tão importante quanto uma partida de pif-paf.

3.9.08

Por volta de 1940*

Seria necessário consultar sistematicamente os arquivos
(como Nava)
Para encontrar a rua exata
Por onde transitou Nicolau Paropas

Dizem que em 1940 esteve em Belo Horizonte
Por causa de um seminário sobre prótese dentária
Na época, seu pai era um respeitado dentista e
francês

Caminhando pela rua
(cujos versos até hoje estariam impressos na calçada)
Nicolau viu Isidora
Nunca se falaram, tampouco se entreolharam
Apenas o poeta,
Com o ar ainda preso no peito,
Experimentou tamanha leveza

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* para eassis, para garro

31.8.08

Cosmogonia*

Primeiro foi a água
Dos seres que dela surgiram
Homens-peixe desejaram caminhar
Fez-se então uma terra vermelha

Diferentemente da que haviam experimentado no oceano,
Uma poeira ainda mais fina ofuscou-lhes a visão
Descobriram o vento
O calor a arder as têmporas
Aprenderam a tanger a terra com gotas de suor
Fizeram instrumentos

Descobriu-se que o céu já existia há anos
Mais tarde, sua infinita beleza
Inventaram o vinho
Por vezes a pequenez os apanhava completos
Majestosos no tempo
Fugidios, os poetas

Seus olhos
A floresta que veio depois

Da cicatriz escorria-se um líquido pegajoso
Surgiram ruas e avenidas
O barulho dos carros a atravessar-lhes a noite
Previram o desaparecimento da água
Mas não quiseram o retorno
Preferiram compor sinfonias

Ode às estrelas

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*para Bu Guanambis e Rafa Barros

28.8.08

Novamante*

Pequena imagem num selo
Um homem tocando piano - Liszt
(corta para)
Mulher segurando espelho

De Portinari a primeira
Novamante a segunda

-------------------------------
* para edu

18.8.08

Das dinâmicas do dia
















Descer o lixo
Conferir a caixa postal
Subir três lances de escada
Jogar as chaves sobre a mesa
Tomar um copo d’água
Ler um livro,
desligar-se deste mundo

A dona de casa apanha capítulos dispersos
Arthur, Herberto, Gabriel, Orides

17.8.08

Monte Alegre

Provavelmente
Na Grécia Antiga
As mulheres (tendo voz)
Clamando por seus filhos
Encheriam
de porrada
A boca recalcada dos fazedores de guerra

Sem dentes,
O poeta
Uma besta-quadrada

A guerra,
Invenção dos homens
para a multiplicação de filmes enlatados

Açoitar o inimigo
com palavras vulgares
Coisa do fascismo

10.8.08

Jonathan Mangabeira

Não compreendo seu sorriso
Ri para mim dizendo até logo
Nos pés o suor do asfalto

(becos, avenidas, BRs)

Nas mãos marcas esferográficas
Poderia caber o mundo em versos rimados
Escrever caminhando
Poeta
Vinte e quatro horas por dia

6.8.08

educação na pedra

um grito violento atrás da porta
o tiro que atravessou o jovem
atormenta gerações

aristocracia paidéia
em restos de livros
comidos por traças
a casa minando água
as pessoas dos retratos desaparecendo no tempo

um bife pra cinco,
no domingo refresco
aristocracia paidéia ou
o imaginário bufão

2.8.08

Da Torre Mais Alta*

Falemos na mocidade presa
Deprimida
Delicadeza perder a vida

Da alma
Não posso negar
Flores sobre a mesa vazia
Disse: – Acaba (devagar)
Promessas ao vento
O bem que seja
Aspiro
Retirante
Amor derradeiro

Ao menos pudesse sonhar
Diria palavras
Erguida aos céus
Sede estranha que ofusca a garganta

Que campos visitar?
Condenada
Duvidando do hálito amargo
Moscas selvagens
Na imagem que assola
Uma senhora, um grito
Quem rezaria Ave Maria?

Oprimida mocidade
A pureza, o encanto
Num estalar de dedos,
Que o tempo venha
– Arthur!
Sua poesia esfola viva


-------
*para Quel Junqueira, para Fred Sabino

13.7.08

para o tirano oswaldiano

ô caralho!
estou puta
que a sua poesia tá melhor que a minha

anacrônico é tu, cara de angu
pro caralho que te partiu

tenho que trabalhá

desemprego assola

papo intelectual conversa de botequim

volto já

se me tirar eu berro, falô, glauborô albino

amo
tão desesperadamente

não entendeu que não sou glauceste e sim glaucoma?

para o poeta anacrônico

o vaso sanitário é um elefante.

12.7.08

à ciel ouvert

ser celestial pousou em mim perfeito.
matanada-nativa. amor pelos pássaros, dislexia.
esta dor inexata,
abandono. não entendo.
arrogância.
circunlóquio.
anacronia maculada.
pro escambau o contemplativo.
prejudica a vida.
permissão para sonhar.
verdade quase-nada. queimapele.
fui ver onde-dá. "tempestê à ciel ouvert"
glauboró-aurá, glauceste, glaucoma.

21.6.08

Da impossibilidade de descrever as coisas
(um livro-poema para Rafael Barros)


O homem atravessa três ruas até o escritório
No percurso, avalia o tempo, compra um jornal, toma um café
Corre o olho pela vitrine:
meias, um casaco de lã, caixa de lenços
Ontem recebeu uma carta
Receita para amar
O destino de um poema

Umidade deixada pela chuva fez lembrar a casa da infância
A avó cozinhando mingau,
a mãe preparando a mesa do jantar
Corpo ardendo em febre
(água e açúcar)

Correr no tempo
A memória a trazer o gesto
Quis ver o rio, mas já era hora de levantar a porta
Atender ao chamado insistente do dia
Três ruas até o escritório

15.6.08

tradução e sonho*

sonhei
descoberto o segredo de llansol
a fase de um poema

to be

vi no traço,
não inventei o sonho

esquecendo-se do que foi visto
enrolou-se no pano

o traço

invenção de um parto
a mulher sangra mais de uma vez


* para carolina fenati

23.5.08

aparentemente sós*

dos pequenos gestos do cotidiano
lustrar os móveis da casa
deitar água nas plantas
fazer o almoço de domingo
convidar a família

uns restos de amor,
um livro, uma vela, um copo d’água



*para bernard

30.4.08

Tarde desperdiçada

Não quero lhe chatear
Uma prece aos ignorantes
Esta dor é temporária
O estômago está vazio, eu sei
Deixe a melancolia instalar de vez
Três livros para ler
Perdida em Tchaikovsky
Escrevo um poema
Você vai me reprimir porque tenho uma casa a varrer?

28.4.08

Seus olhos, ou da polifonia nesta manhã desconsolada*

Talvez fosse melhor não mencionar nada
Que o tempo se encarregue de dizer,
na experiência dos dias,
o apelo deste corpo

Um copo d’água, por favor
Não adianta negar
O espírito transita no tilintar das lágrimas
Alegria, gozo e dor

Nesta manhã de sábado,
a cabeça ainda zumbindo,
vejo sua asa partir no chão
Três movimentos ao redor do corpo

No sonho ainda se podia ouvir
instrumentos, vozes,
passantes a bater o pé no cimento
Corte seco

Um dia inteiro pela frente
Arrumar a casa
Postar o lixo, roupa no varal
Misturar arroz no feijão

Barulho que vem do asfalto
anuncia a partida e chegada dos carros
Crianças brincando no jardim
Esquartejam gafanhotos no meu cérebro

Cumprida a ordem
À tarde estarei na cama
Um romance que não acaba
Livros de poesia

No cair do dia,
talvez uma festa,
um jantar entre amigos
ou o sono dos justos

Escrever é menos complicado sob efeito do álcool
A palavra corta a folha
Navalha afiada
Os dedos sangrando

Nem clichê, nem rima
Sem lentes de aumento
Não há foco que resista
Espera a ressaca passar


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*depois do Graveola, também para o Rafa

2.4.08

2.3.08

Nada como antes

As pernas saradas das mordidas de pulga
Costas arqueadas

Antes era normal
Voar em sonho
Deitar o azeite no pão
Vinho e jazz

16.2.08

Do mundo

Esfregar bobagens na cara
Da verdade que imprime o mundo

(ruir)

Discurso armado


– Foda-se! – disse um bêbado
e me bebeu inteira.

21.1.08

radiografado

















Foi quando o pássaro anunciou a sua descida
A manhã estava azul
Entendeu que era mais do que mera contemplação

7.1.08

Sonhar morbidez

Vez em quando posso lhe dizer palavras delicadas
Pedaços de algodão, água para lavar o corte
Comer o algodão
Sonhar que se morre sufocando
No desespero do quarto escuro a faca em punho
Palavras delicadas ao vento
nomeiam a loucura do outro

1.1.08

Caixa acústica

Numa caixa de plástico crescem animais estranhos
Metade pássaro e homem
Algumas linhas costuram a barriga em espiral
São postados algodão e açúcar
Um rio corre por dentro
Alguns peixes tentam fugir para a superfície
e sentem o ar cegá-los
Não podendo voltar, criam pernas
Tornam-se guardiões da água

O homem quer virar peixe alado
Não consegue
Seu corpo está ardendo

Da boca vemos brotar uma árvore
Flores explodem um líquido pegajoso
Os lábios se arrebentam

Palavras são como eletricidade
O som invade a caixa
as paredes tremem

(oxigênio)

A caixa é como uma estufa
Transforma seres eletrônicos em animais da terra