15.9.11

Biografia literária (ao querido Mangabeira e aos jovens leitores)


A minha biografia literária  sofre do mesmo mal que o da maioria dos jovens da minha época que não faziam parte (nem de longe) da paidéia aristocrática. A escola me fez ler todos os livros da Coleção vaga-lume e eu li até descobrir o poema "Ismália" de Alphonsus de Guimaraens, quando começava a perceber o mundo se abrindo na estante de casa. Meu pai consumia tudo que podia e nunca fez questão de nos apresentar ou impor a leitura. Mas reproduzia em voz alta o que sabia dos clássicos, dos manuais de medicina e das ficções científicas. Desde então passei a desenvolver a escuta e perceber cada dobra do corpo no ato da fala. Ele contava muitas histórias como se fossem aventuras dele. Daí passei a desconfiar de que não nos dizia toda a verdade. Precisava rapidamente conferir nos livros todo aquele emaranhado de histórias narradas pelo meu pai. Tornei-me uma leitora esquizofrênica, catando trechos de tudo que podia ler sem que ninguém percebesse, porque havia livros proibidos para minha idade,  incluindo gibis pornográficos mocados num cantinho onde a Barsa imperava.

Do poema “Ismália”, aos 13 anos, a Werther, na juventude. Tentei compreender o que é desejar duas coisas ao mesmo tempo e a impossibilidade de realização do desejo a não ser pelo fim trágico. Essa é a tensão das duas histórias. Quanto à de Goethe, meu pai advertia que o livro conduziu, na época de seu lançamento, ao suicídio de vários jovens comovidos com o sofrimento do pobre Werther. Percebi que era preciso ler com distanciamento, o contrário disso seria a loucura. Descobri que os poetas antecipavam as coisas pra gente
e que não precisávamos ser tão literais nas nossas ações. Nesse sentido, quando não era a vida a nos dizer, como leitores a gente também amadurecia à força.


É saudável nos distanciar das "verdades" do livro e compreender que a literatura lida com a ironia. Mas a maioria dos meus amigos que liam, liam pouco, ocupados com o eterno movimento da conquista, e não estavam interessados em desenvolver sobre assuntos tão complicados, a não ser como artifício de sedução. 

Por fim, descobri a física e, ao desdobrar um mapa do universo, vi que Ismália era uma gota no oceano e Werther um ser perdido no espaço. Encantei-me com as possibilidades de ler no céu o infinito que nos aguardava. Porém, ao invés de ir pra física, fui fazer letras, para apreender um pouco mais o infinito que há nos livros. 

Um amigo dizia que os poetas só amam aquilo que escrevem e que não se importam com os leitores. 

Glaura C.
Belo Horizonte, 15 de setembro de 2011

2 comentários:

Confligerante disse...

Was ich von der Geschichten des Armen Werthers nur habe auffinden können, habe ich mit Fleiss gesammelt..., querida Glaura, a história da literatura está repleta de emoções (a literatura na nossa vida), foi e é o canto mais distante do mundo, foi e é a solidão que se enverga. Seria a literatura, a nossa, o recanto ou a maloca do ser avulso?
Adorei o que você escreveu aí, é triste, é tenebroso, e sabe? que meu lugarzinho preferido na Alemanha era a casa de Lotte, vez e várias vezes corríamos para lá, trago de lá muitas lembranças, e a mais viva foi o primeiro livro que li em alemão, nesta casa comprado, acima estava o início dele, Die Leiden des Jungen Werthers, minha cidade preferida Wetzlar, onde o poeta escreveu, onde o poeta quase morreu de amor. Você já assistiu o filme Goethe? É uma "biografia" de Goethe nos tempo em que escreveu o primeiro romance, ou novela (como queiram). Esta aí. Como éramos crianças quando nos encontramos! Perdemos muitas conversar devido a imaturecência.

glaura disse...

ei joão, que belas palavras vc me diz. sim, o poeta quase morreu de amor. bem sei nesta vida o que é ter o peito ardendo mas o quão importante é manter-se atento na estrada larga. toda a literatura se serviu da tristeza. é triste sim como tudo que vale a pena ser lido. no livro que trago comigo, já comido por traças, marquei neste trecho a palavra fruir e nunca mais me desprendi dela:

"O que mais me irrita são as odiosas distinções sociais. Reconheço, melhor do que ninguém, a diferença de condições e as vantagens que a mim mesmo delas decorrem; desejava, entretanto, que elas não me embaraçassem o caminho precisamente no ponto em que ainda me seria possível fruir na terra um pouco de prazer, um raiozinho de felicidade".

mas a gente conversava! pelo menos eu atentava para o mundo que vc indicava. eu via que tudo podia ser um pouco além das bagunças na sala de aula. só mais tarde descobri isso na escrita. o tempo é necessário.